IYÁ ÀGBÀ ÀJÉ, A ANCESTRALIDADE MANIFESTA
Artigo escrito por Marcos Antônio dos Santos e Maria do Socorro Sapucaia Sepulveda Neto, retirado do livro Faraimará - O Caçador traz Alegria, escrito em comemoração aos 60 anos de Iniciação de Mãe Stella de Oxóssi, publicado pela Editora PALLAS
...Vós dobrai o joelho, dobrai o joelho para as mulheres.
A mulher vos pôs no mundo, assim somos seres humanos.
A mulher é a inteligência da Terra, dobrai o joelho para a mulher.
A mulher vos pôs no mundo, assim somos seres humanos.
... Elas dizem, que os que não serão
Seus partidários, elas estragarão.
Elas trarão doença para seus corpos.
Elas levarão os intestinos das pessoas.
Elas comerão o fígado das pessoas.
Elas beberão o sangue das pessoas.
Elas não ouvirão ninguém...
Os extratos acima, retirados de dois diferentes - ìtàn odù ifà -, apresentam aspectos antagônicos da concepção iorubá acerca de Ià mi – Minha Mãe, divindade mítica, representação coletiva das entidades genitoras ancestrais femininas, nossa mãe primordial, matriz primeira da qual advém toda a criação do mundo material-Terra, mantenedora do mundo, detentora do axé feminino – poder da fecundação, possuidora de um poder revestido de toda a ambivalência inerente à Grande Mãe da mitologia universal.
Na atualidade, observa-se que, tanto para o povo iorubá quanto para as comunidades nagô do Brasil, a natural dicotomia inerente às Ià mi perde sua função primeira de geradora de vida e passou a assumir o papel de bruxa demoníaca, destruidora e vingativa, resultando, assim, numa espécie de antidivindade iorubá que viria a ser uma antítese de si mesma.
Acreditamos que essa deturpação do conceito primordial, acerca das Ià mi tenha-se originado com a inversão dos árabes mulçumanos e se intensificado com a introdução do colonialismo europeu, através da ação direta do missionário, um dos primeiros pesquisadores da religião e cosmogonia do povo iorubá que, não conseguindo penetrar na essência de uma religião baseada na concepção do axé, interpretou-a transferindo-lhe conceitos próprios a seu referencial de cultura e de religião fundamentada na salvação. Com isto, conceitos básicos e fundamentais foram adulterados e repassados ao longo dos anos como verdades absolutas, admitidas por autores que se copiaram, e, ao serem usadas de forma tendenciosa durante o processo de catequese, foram-se misturando e contaminando antigos fundamentos culturais e religiosos iorubá.
Falar das Ià mi cria uma expectativa mesclada de receio e curiosidade, assim como exige respeito e prudência, tanto pela imagem de divindade ne- fasta que lhe foi atribuída, quanto pelo poder perigoso que lhe é inerente e lhe reveste de mistério quase indecifrável. Compreendê-la na sua totalidade, como expressão, ao mesmo tempo, do positivo e do negativo, tem sido uma tarefa árdua.
Nossa vontade de entender as Iá mi tem sido constante, desde o momento em que atentamos para a divergência existente entre a concepção geral do seu conceito, disseminada nas comunidades nagô e a que nos é transmitida através das salvas rituais que lhes são feitas, nessas mesmas comunidades, em língua original, muito bem preservadas graças ao tradicional sistema de transmissão oral mantido e utilizado por seus membros como parte da herança legada dos seus ancestrais africanos.
Neste artigo, apresentaremos uma síntese de nossas primeiras reflexões sobre as Ià mi, fruto de uma busca incansável de informações e de uma luta incessante contra as dificuldades quanto ao acesso aos textos originais, a veracidade e a integridade das traduções.
Decidimos, como ponto de partida, fazer uma leitura interpretativa d mito da criação seguinte:
IYÁ MI E O MITO DA CRIAÇÃO DO PANO DE EGUM
Òsá méji é rico.
Grito poderoso.
Barulho de sino (ajija) chega do além.
Ifá é consultado para Odu,
no dia em que ela vem do além para a Terra.
Ifá é consultado para Obarixá,
no dia em que ele vem do além para a Terra.
Ifá é consultado para Ogum,
no dia em que ele vem do além para a Terra.
Estes três chegam aqui.
Odu somente é mulher entre eles.
Odu diz, você Olodumaré.
Ela diz, eles vão assim para a Terra.
Ela diz, quando eles tiverem chegado lá, então o quê?
Olodumaré diz, eles irão para a Terra, a Terra será boa.
Ele diz, todas as coisas que eles queiram fazer, então,
ele diz, ela lhes dará o poder,
isto será então bom.
Ogum marcha à frente deles.
Quando Ogum marcha à frente deles, Obarixá segue.
Quando Obarixá segue, Odu atrás.
Quando Odu vem atrás, ela volta.
Ela diz, você Olodumaré.
Ela diz, a terra onde eles vão assim.
Ela diz,Ogum,
ela diz, tem o poder dos combates,
ela diz, ele tem o sabre, ele tem o fuzil,
ela diz, ele tem todas as coisas para fazer a guerra.
Ela diz, Obarixá,
ela diz, ele também tem o poder.
Ela diz, com o poder que ele tem, ele faz toda coisa que quer.
Ela diz, ela é mulher entre eles, ela é Odu.
Ela diz, qual poder é o dela?
Olodumaré diz, qual é o seu poder?
Ele diz, você será chamada, para sempre, mãe deles.
Ele diz, porque quando vocês partem, todos os três,
ele diz, você, a única mulher voltou.
Ele diz, a você, esta mulher, é dado o poder
que faz dela mãe deles.
Ele diz, você, você sustentará a Terra.
Olodumaré lhe dá o poder.
Quando ele lhe dá o poder, ele lhe dá o poder do pássaro,
ele lhe traz o poder de eleye (dona do pássaro).
Quando ele lhe trouxe o poder de eleye, Olodumaré diz, está bem.
Ele diz, esta cabaça de eleye que ele lhe trouxe,
ele diz, conhece ela seu uso sobre a Terra?
Ele diz, que ela conheça seu uso sobre Terra.
Odu diz, ela a conhecerá.
Ela recebe o pássaro de Olodumaré.
Ela recebe então o poder que ela utilizará com ele.
Ela parte. Ela está no ponto de partir.
Olodumaré a chama para que volte de novo.
Ele diz, está bom.
Ele diz, volte.
Ele diz, você Odu,
ela diz, volte.
Ele diz, quando ela chegará sobre a Terra,
ela diz, como vai você utilizar os pássaros,
e as forças que ele lhe deu?
Ele diz, como vai ela utilizá-las?
Odu diz, todas as pessoas que não a terão escutado,
ela diz, ela as combaterá.
Ela diz, aqueles que não tiverem vindo lhe pedir uma indicação,
(aqueles) que o tiverem feito,
que não ouvirem todas as coisas que ela diga para eles,
ela diz, ela os combaterá.
Ela diz, aquele que se aproximar dela para lhe pedir para ter dinheiro.
ela diz, ela lhe dará.
Ela diz, aquela que lhe pedir para parir,
ela diz, que ela lhe concederá.
Ela diz, se ela tiver dado a alguém dinheiro,
se ele se mostrar em seguida impertinente com ela,
ela diz que o retomará.
Ela diz, se tiver dado a uma pessoa um filho,
se ela se mostrar em seguida impertinente com ela,
ela diz que o retomará.
Ela diz, toda a coisa que fizer para qualquer um,
ele se mostrar em seguida impertinente com ela,
ela diz que o retomará.
Olodumaré diz, está bom.
Ele diz, não está mal.
Ele diz, utilize com calma o poder que eu te dei,
Se ela utilizar com violência, ele o retomará,
e de todos os homens que te seguirão,
eu fiz de você mãe deles.
Toda coisa que lhes agrade fazer,
é coisa que eles deverão anunciar a você, Odu.
Depois daquele tempo, Olodumaré deu o poder a mulher,
porque aquela que recebeu então o poder se chamava Odu.
Ele dá o poder às mulheres de dizerem toda coisa que lhes agrade.
O homem não poderá fazer sozinho nenhuma coisa na ausência da mulher.
Odu chega à Terra.
Nesta primeira parte do texto, destacamos os seguintes aspectos:
Se considerarmos que a criação do mundo significa o fim do caos primordial pelo estabelecimento da ordem no universo, entenderemos que as três divindades enviadas por Olodumaré, assim como a sua sequência na ordem de partida do além, fazem uma alusão à vitória da harmonia sobre o caos - momento inicial da criação do mundo material. Ogum vem para harmonizar, Obarixá para criar e Odu para equilibrar. Entendemos também que os poderes delegados a estas divindades revelam os elementos essenciais desse processo de criação.
As divindades e os seus poderes são indissociáveis, de modo que falar do poder é falar da própria divindade.
Entendendo o restabelecimento da harmonia como o principal objetivo da guerra,poderíamos dizer que a guerra de Ogum é fator preponderante para a instautação da harmonia no caos primordial, uma vez que isto posibilitará às demais divindades executarem suas tarefas.Por isso Ogum marcha à frente Uma vez enviado à Terra e nela instalado, o combate de Ogum se mantém como um fator continuo,observado desde o conflito entre as divindades cria- doras e, subseqüentemente, durante toda a existência,isto é, na eterna luta dos seres procriados pela sobrevivência, na busca do poder e do equilíbrio interior do ser, na luta contra a ignorância, na conquista do conhecimento etc.
Através da arma de Ogum, observamos a materialização da vontade dirigida para um objetivo, assim como observamos o simbolismo a um só tempo do instrumento da justiça e da opressão apontando para o caráter duplo da missão delegada às divindades. Isso indica que o uso indevido dos poderes poderá culminar com a posterior destruição de tudo o que venha a ser criado, implicando, conseqüentemente, o retorno ao caos. A marcha à frente de Ogum também nos indica que o processo da criação deriva de tudo o que Ogum implica.
Obarixá, a divindade criadora por excelência, tem a sua posição bem defi. nida (I. 41-44), devido ao seu poder que lhe permite fazer tudo o que quer, ou seja, tem a plena liberdade de ação, o livre-arbítrio para criar sem nenhuma restrição. Sua posição intermediária na jornada alude à interdependência ou à importância da ação comunitária, assim como o seu poder pleno evoca um agente moderador que intermedeie e garanta a forma correta na condução da sua atuação.
Odu, única divindade feminina nesse instante inicial do mito é também a única divindade que não possui uma função definida a ser desempenhada na tarefa delegada por Olodumaré (l. 18-21). Isso nos sugere uma identificação do seu princípio passivo associado ao aspecto feminino, cujo sentido de exis- tência é receber a ação do princípio ativo masculino. Nota-se que a Ela cabe apenas 'acompanhar' as demais divindades. Ora, sendo Odu também uma divindade, inferimos que Ela deve possuir um poder imanente que estará a serviço das demais divindades no referido processo.
Se considerarmos que ao se procurar saber a finalidade de um intento,se está procurando evitar todas as possíveis fontes de erro que porventura pos- sam surgir, veremos que a primeira transgressão de Odu é uma manifestação a guanto ao aspecto feminino e ao principio passivo de Odu,ob. seu nascimento, expressao divina de mulher e mae.
A volta de Odu (1. 32-47),além de se constituir em nova transgressao, revela-nos uma tomada da consciencia de si mesma,ou seja, ao conscien- tizar se de que era a única a quem Olodumaré nao havia delegado poderes nem afazeres específicos para o cumprimento da missao, volta em busca de esclarecimento,ao tempo em que expressa sua insatisfacao diante da sua "condicāo secundária". Com isto, Ela finda por reivindicar seus direitos como divindade, o que alude a uma busca de independência e igualdade frente às demais,assim como nos faz divisar a sua constante manifestação de inteligência aliada a um estado de perfeito equilibrio entre o racional e o emocional.
A resposta de Olodumaré mostra-se aparentemente simples, mas na ver- dade é bastante complexa. O que seria uma resposta (1. 48-56) torna-se na verdade uma revelação daquilo que se encontrava latente: o poder de Odu.
Quando Ele declara que Ela será para sempre Iá won, Mãe deles, Ele a está conscientizando do seu poder imanente, uma vez que Ela era a única divindade feminina presente na embaixada. O título de Iá, mãe, que lhe foi conferido,na verdade era sua predestinação, visto que, por ser a única divin- dade feminina em um processo de criação, Ela já era depositária do arquéti- po da Mãe,com toda a sua ambivalência,plenitude e essencialidade.
Como tal, caberá a Ela ser receptáculo e matriz da vida, englobando o ierentes aspectos da experiência da vida, ou seja, a criacāo, a manifestaca e a destruição. Assim, sendo a Mãe, Ela é a consciência da totalidade mani. festada.
A valorização por Olodumaré da atitude audaciosa de Odu nos sugere que com a transgressão Ela mostrou possuir valores essenciais que a tornariam capaz de incorporar a sua função magna de Mãe, visto que para ser Mãe Ela necessitaria da consciência para "realizar”. Porventura não teria sido esta toda a sua busca?
Olodumaré declara que Odu sustentará a Terra (1. 57-58). Ora, para sus- tentar a Terra Ela terá de desempenhar da mesma forma a sua função de criadora e dé organizadora e, para tal, precisará pôr ordem primeiro em si e depois em torno de si. Este vem a ser um atributo do justo, por ser ele o fundamento do mundo e ao qual cabe dar a cada coisa o lugar que lhe com- pete, ordenando na medida exata. Sustentar a Terra é equilibrar as correntes antagonistas, e para isso é preciso ter em si, de forma equilibrada, essas pró- prias correntes, o que significa alcançar a consciência no sentido mais eleva- do. Se Odu sustentará a Terra, caberá a Ela estabelecer a lei, manter a disci- plina, o equilíbrio rigoroso, obrigando os seres procriados a assumirem as conseqüências de seus atos. Considerando-se que o equilíbrio rigoroso é a lei da organização do caos no mundo, reconheceremos em Odu a própria ex- pressão da justiça, atuando como agente moderador, assim como identifica- remos outros aspectos da ambivalência a Ela atribuída. Isso nos revela a presença do princípio ativo masculino em Odu, o que nos sugere tanto a totalidade de seu equilíbrio quanto a revelação do seu possível caráter andrógeno.
Ao conferir-lhe o axé ou poder do pássaro (1. 60-65), podemos inferir que Olodumaré a entregava o controle total sobre a criação, assim como o conhecimento genuíno que pode muito bem ser associado ao próprio destino. O poder do pássaro é o poder da fecundidade, o eterno feminino, a força reprodutora encontrada tanto no princípio feminino quanto no masculino.
Detendo o poder e o controle sobre a fecundidade, caberia à Odu decidir quanto a permitir ou não a criação e a sua continuação.
Ao se tornar Eléye, a proprietária do pássaro, Odu guarda o poder que dele advém; Ela própria se assemelha ou se torna pássaro o que lhe confere um misto de mistério e perigo. Ela se identifica com a alma ancestral que se encontra associada ao mistério da vida e da morte por estar relacionada com a descida das almas até a matéria e o seu posterior retomo além. Sua identidade com o pássaro lhe atribui o mistério gerador da vida observado através da relação ave - ovo em que a dualidade se resolve na unidade: o ovo está contido na ave, a ave está contida no ovo, o lugar e o sujeito de todas as transmutações, uma realidade primordial que contém o germe da multiplicação dos seres, a dinâmica da vida. O mistério do ovo torna-se inerente à Odu, Ela possui o óvulo, nela se manifesta a imagem da perfeição, a imagem do mundo.
Nossa conjectura se reforça quando Olodumaré entrega à Odu o igbá-odù; cabaca de Odu, representação do universo e da sua totalidade, símbolo do útero no qual se elabora a vida manifestada. O pássaro no interior do igbá-odù representa a um só tempo o poder da gestação e o elemento procriado. O igbá-odù simboliza a unificação das forças criadoras, constituída por Odu; parte inferior da cabaça; que representa simultaneamente o aiê - Terra e a forca criadora feminina, por Obarixá; parte superior da cabaça; representando o orum- Além e a força criadora masculina e as entidades descendentes, representadas coletivamente por certos elementos misteriosos que se encontram apoiados no interior da parte inferior da cabaça, associando-se ao feto no interior do útero materno, nutrindo-se, formando-se como ser, herdando seus caracteres físicos e psicológicos, assim como absorvendo a sua “identidade ancestral”. A tradição nos ensina que o igbadu deve manter-se sempre fechado, o que nos leva a compreendê-lo como manifestação máxima do poder ancestral criador, símbolo da interação equilibrada entre o masculino e o feminino necessária à preservação da dinâmica da criação.
A pergunta de Olodumaré (1. 66-69), ao nosso ver, pretende testar a humildade de Odu, uma vez que Ele tem pleno conhecimento de que Ela desconhece O uso dos poderes a Ela conferidos. Também inferimos que Ele, Olodumaré, procura avaliar se Odu fará uso dos poderes conforme Ele intencionava.
O decreto de Olodumaré (1. 70-71) evoca o autêntico ato de transmissão de axé, segundo a tradição iorubá observada nas comunidades nagô do Brasil: o igbá é passado mano a mano, e o verbo efetiva o ato. A resposta de Odu (1.72), vista por este prisma, configura a autenticidade do ato de recebimento do axé.
Pode ainda ser interpretada como uma resposta inteligente, embora vaga, uma vez que não esclarece a Olodumaré suas intenções nem lhe certifica haver uma sintonia entre o que Ele deseja e o que Ela se propõe fazer. Aparentemente, a resposta parece ambígua, pois pode significar apenas um cumprimento da determinação do Deus ou uma predisposição para vivenciar sua competência livremente, de modo a acertar ou errar; também poderia parecer prudência, pois, sem garantir a consciência plena do uso que fará dos poderes, Odu isenta-se da culpa de possíveis erros com consequências desastrosas, pelo menos na fase de “experiência”, o que não reduz os riscos da sua má utilização; e ainda poderíamos interpretá-la como um compro- misso de aprender o seu uso através da experiência. No entanto, Olodumaré sabe que o poder conferido a Odu é muito grande, e a sua má condução poderia causar os mesmos danos que causariam os poderes de Obarixá e de Ogum. Desse modo, Olodumaré, não satisfeito, prudentemente chama Odu de volta e reformula a pergunta (1. 79-90), forçando-a a assumir um compro- misso perante Ele.
Odu, através da espontaneidade dos seus atos, demonstrou-se inteligente e portadora de diversas virtudes que levaram Olodumaré a lhe conferir poderes incomensuráveis. O poder de Odu supera os poderes das demais divindades que com Ela viriam para a Terra. Se para eles Ela atuará como agente modera- dor dos seus poderes, para Ela só Olodumaré poderá atuar como freio no uso do seu poder. Ao questioná-la sobre como Ela pretendia fazer uso desses poderes, Ele busca uma forma de orientá-la indiretamente enquanto a obriga a usá-los de forma condizente com o que Ele pretende, induzindo-a a assumir um compromisso perante Ele.Ao revelar suas intenções, Odu, inconsciente- mente, estabelece as leis naturais que atuarão na Terra e que, consequentemente, atuarão também na sua própria conduta.
Odu, como Mae ancestral divina, transmitirá a suas potencialidades a todos os seres procriados, o que constituirá a memória ancestral de todos, e, deste modo, Ela atuara intra e extraindividuo, através da consciência, da emoção, do espírito e das próprias forças da natureza. Se considerarmos que a criação se renova ou progride a cada conflito superado, entenderemos com mais clareza a metáfora utilizada por Odu ao dizer que faria uso do seu poder através do combate (1. 91-121).
O combate evoca o triunfo da ordem sobre o caos do mesmo modo que a vitória no combate simboliza tanto a criação do mundo quanto uma participação nessa criação contínua. Ela combaterá aqueles que não sejam seus partidários. Uma vez que todos serão seus filhos ou, mais claramente, seus descendentes, os não partidários serão aqueles que estarão negando sua autoridade e, por extensão, a autoridade dos ancestrais, dos seus criadores materiais e espirituais e a autoridade do próprio Olodumaré. Estes serão os infratores, os que agirão com insolência, desrespeito, irreverência, os que terão atitudes ofensivas para com Ela. Ao negar a sua autoridade, eles estarão fomentando a anarquia e a desordem.
Consideramos um desrespeito para com Odu sempre que ocorre um atentado contra a natureza, um desrespeito para com os pais, os mais velhos, para com o outro ou até mesmo para consigo próprio. Odu será a guerreira que pode se manifestar benevolente ou nefasta, desde que seja justa. Ela não hesitará em desencadear catástrofes, medo, insanidade, fome, morte, doença, esterilidade e todo tipo de infortúnios sobre o homem, sempre que houver um estremeci- mento entre a harmonia do homem e seu meio. Por outro lado, Ela proverá boa caca, pesca abundante, fartura na colheita, sucesso nos negócios, muitos filhos, vida longa, saúde, prosperidade e todas as maravilhas sempre que existir o respeito, a ordem e a harmonia. Desse modo, fica claro que a forma como os poderes de Odu se manifestarão na Terra depende da conduta do ser procriado. Assim, respeitando o livre-arbítrio de cada um, Odu impõe as suas leis.
Quando Olodumaré concorda com Odu (1.122-123), parece-nos que Ele está totalmente satisfeito com a sua forma de utilização dos poderes. Sem dúvida é uma afirmação incontestável da semelhança entre os dois, o que nos leva a deduzir que Ele, caso estivesse no lugar dela, agiria da mesma forma. Essa identidade entre eles é um indicio de que Odu é a "expressão feminina de Deus", o que também pode ser observado no ato de Olodumaré entregar diretamente nas mãos de Odu a representação simbólica do universo em sua totalidade. Tendo em vista que no Deus uno se apresentam os princípios masculino e feminino, poderíamos dizer também que, como as demais divindades criadas por Olodumaré, Odu é sua própria extensão por ter recebido os poderes que são concernentes ao Deus.
A advertência de Olodumaré a Odu (I. 124-127) é mais uma confirmação de sua aquiescência da forma como Odu pretende usar os seus próprios poderes. Compreendemos que o conselho e a alerta de Olodumaré quanto à calma e à não violência, respectivamente, são uma imposição a Odu de que mantenha suas-virtudes e a retidão de conduta que a Ele foram demonstradas. Desse modo, Ela deveria agir exatamente conforme havia-se comprometido, o que não implica, de forma alguma, o não uso da força e da coação caso fosse necessário; deveria observar o respeito ao direito, sendo justa e imparcial na observância das leis por Ela estabelecidas e por Ele sancionadas. Com isso Ele a previne de que não lhe será permitido perder o seu equilíbrio interior, ou seja, deverá contrabalançar constantemente a sua austeridade com a tranquilidade de espírito, fazendo uso de sua total consciência. Ela não poder-se-ia afastar do seu objetivo principal de criar e sustentar a Terra. Caberia a Ela manter a harmonia e a paz, fazendo uso da ambivalência inerente ao seu poder. Com isso lhe é permitida a destruição, a discórdia, a guerra como meios necessários para a preservação da existência.
O discurso final de Olodumaré consolida tudo o que já comentamos no decorrer de nossas reflexões.
Constatamos uma reafirmação do poder imanente de Odu; Odu é a mãe de todos; da identidade entre Olodumaré e Odu; Olodumaré agirá com Odu do mesmo modo como Odu agirá com os seres procriados; da sanção da lei estabelecida por Odu; todos deverão anunciar-lhe todas as coisas que lhes agradem fazer.
De tudo o que observamos nessa primeira parte do mito gostaríamos de ressaltar que Odu exige dos seres procriados um comportamento semelhante àquele que ela teve com Olodumaré; e, ainda, que todo ser humano por herdar a essência da Grande Mãe Ancestral, torna-se um reflexo da prórpia Mãe.
Consideramos oportuno ressaltar que muitos dos nomes atributivos com os quais Odu também é conhecida, podem ser identificados em determinados instantes do texto, a exemplo de: Ìyáàgba(iaba) - Mae ancestral, e Ìyá àjé - Aguela que é mãe; nomes que evocam o momento em que Olodumare confere odu o título de Ìá won (Ia won)-Mae deles (de todos os seres que a seguirem). Ìyálóòde (ialodê) - Mae respeitável da cidade; título conferido à mulher que, devido aos seus poderes religiosos, lidera todas as mulheres de uma cidade, representando-as juridicamente ou até mesmo arbitrando, fora do tribunal, em desavenças que surjam entre elas. Reportamo-nos a Odu como sustentadora da Terra e como expressão da justiça. İyá àtioró, iyá atiálá, jyá osòròngà, são três nomes de pássaros; os quais relacionados ao instante em que Odu recebe o poder de Eléye - A proprietária do pássaro. Alábára méji - A proprietária, no sentido de protetora da mulher grávida; que associamos tanto a dualidade do seu poder quanto ao instante em que ela recebe o poder da fertilidade. Olójú méji - A proprietária daquele que possui dois olhos que interpretamos se referindo a seu título de Ìyá won (Iá won), assim como a dubiedade do seu poder e a forma de utilizá-lo como expressão de justiça.
Até hoje, Odu, enquanto representação coletiva de todas as divindades ancestrais femininas é reverenciada como criadora e sustentadora da Terra-Nossa Grande Mãe Ancestral, a quem devemos louvar e agradecer pela existência.
Dos cânticos em seu louvor destacamos as seguintes frases que refletem a grandiosidade de Odu para a comunidade nagô do Brasil:
Mãe, receba meus humildes respeitos
e agradecimento pela existência da Terra.
...nossa Mãe existe sobre a Terra...
Mãe òsòròngà, prodigalidade
que é digna de reverência...
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